Amo-te, pai!

O uso de pai deve ser administrado com cuidado...
 
Embora se apresente em diversos tamanhos, o pai pode ser usado todos os dias, sem causar habituação. Habitualmente, pela manhã, o pai pode ser administrado numa dose ligeira, o que implica acordar os filhos, gritar para que se despachem (enquanto faz, atabalhoadamente, a barba) e ameaçar, como de costume, que não espera nem mais um minuto, depois de buzinar duas vezes, até que os filhos desçam, sem atrasos, para irem para a escola. Há, também, quem use uma porção, mais ou menos variável, de pai, ao fim do dia, o que inclui dar a voz de comando em relação ao banho, lutar contra as dúvidas de matemática que se acotovelam quando os trabalhos de casa puxam pelo sono, e ler (nunca contar...) uma história, antes de dormir. Muito raramente, há quem use o pai durante a noite, para caçar “fantasmas”, nos maus sonhos, ou quando uma dor de barriga vem a calhar, sempre que se descobre (a altas horas) que os trabalhos de casa se perderam entre a sala de aula e o caminho para casa. Por mais que haja quem recomende que isso se trata duma adição muito perigosa, há quem consuma, ainda, doses generosas de pai, ao fim-de-semana. E, claro, quem sofra do perigoso distúrbio de não passar sem ele, antes e depois da escola, enquanto se esgadanham os dois atrás duma bola ou sempre que contam histórias e piadas palermas e divertidas, enquanto se martirizam com as almofadas e deixam o sofá num estado de sítio.
Tanto pai pode, de facto, fazer mal a uma criança! Daí que se deva considerar que um estado normal de pai (que deixa uma criança à margem de intoxicações delicadas) é que ele seja sentido como se não tivesse coração, fosse trôpego com as palavras, tivesse um atrapalhador no lugar do coração e, sempre que são precisos gestos claros e calorosos de ternura, que ele mais pareça um prestidigitador. Ou que seja mais ou menos natural que o pai não se lembre dum aniversário importante, do nome da directora de turma, dos dias dos testes ou das disciplinas dum filho, por exemplo. Ou que se entenda como um acto de gestão corrente que, sempre que um filho compartilha desabafos, o faça com a mãe e que, depois dela os dividir com ele, o pai faça de distraído (até porque isso leva a que os filhos falem com ele por meias-palavras e por entre linhas, como se, em vez dum homem generoso e palpitante, o pai fosse, consoante “o fumo” que lhe esvoaça das orelhas, um vulcão adormecido). Ou que se convencione que um pai trabalha muito e que, por causa disso, a gritaria lá em casa baixa de tom mal ele esteja para chegar! Ou que, consoante os casos, a mãe, depois de se esganiçar, acabe a dizer: “Não tarda nada, chega o teu pai, e tu vais ver!...” (como se, em vez do Pai Natal, o pai fosse uma versão, com fato e gravata, do lobo mau). Ou − ainda, que o pai mereça mimos e abraços (ou venha de lá um: “paizão, gosto muito de ti”!) unicamente quando o “rendimento social de inserção” dum filho, entretanto, se “constipou”, e a mesada dele precisa de ser aconchegada com uma emissão... de dívida. Ou − e a lista de sintomas “anti-inflamatórios” parece, felizmente, nunca mais acabar! − que se ache razoável que o pai exagere nas vezes em que faz de “homem-invisível” e sempre que, finalmente, ele se chega à frente, todos concordem que aquele momento... nunca existiu, dando à sua autoridade um leve tom de “missão impossível” (sem que, no entretanto, ele lucre com o glamour dum protagonista e que, em vez de se fazer transportar num coração que mais parece uma limousine, o pai, com o barulho das luzes, antes fosse um verdadeiro anti-herói).
Todos estes embalagens de pai são vulgares e equivalem às diversas cores com que se revestem as drageias ou os comprimidos. Devem ser administradas com cuidado e, sendo assim, podem ser deixadas ao alcance das crianças. Seja como for, não se deve temer pela saúde duma criança sempre que o reconhece tão capaz de intuir e de resolver aquilo que ela, ainda, mal pensou, que o viva em “modo de voo”, sempre desligada dos gestos guerreiros que cobrem de vaidade qualquer pai.
É claro que o amor do pai talvez traga consigo uma ligeira alteração da temperatura do corpo: é natural que os filhos, bem amados pelo pai, não sejam tão afoitos e perseverantes como deviam porque − com a mesma desenvoltura com que chamam pela mãe, mal lhes dói seja o que for − logo que falam “tu cá, tu lá” com uma contrariedade, terminam sempre a reconhecer que o pai a... resolve. E aí, sim, o estado geral duma criança corre perigos severos. Porque, regra geral, confere a um pai um estatuto de super-herói, com a imensa vantagem dele não ter que se mascarar para evocar os seus poderes. E, é claro, que o coloca ali entre um bombeiro e um mágico (o que, não lhe dando um descanso por aí além, evoca um lado amigo do bricolage que lhe alimenta uma aura de faz-tudo, sem direito a férias, fins-de-semana ou feriados).
Em circunstâncias-limite, tanto pai gera um estado inflamatório exuberante, que torna uma criança um bocadinho desgovernada do juízo podendo acontecer que, depois de se colocar às suas cavalitas, ela dobre o riso enquanto ele a lança ao ar e a transforma num... aviãozinho.
Há quem, no entanto, reconheça que, enquanto a mãe a acalenta, o pai faça de conta que tem “nervos de aço” e, depois de encher o peito de ar, e de coração apertado, dê um empurrãozinho no rabo duma criança enquanto a faz ter um pouco mais de mundo. Mas todo o cuidado é pouco! Até porque há relatos − preocupantes! − que, garantem que há pais que fingem ser um gigantão e, depois de se porem em bicos de pés e de esticarem os braços o mais que podem, levam os filhos a acreditar que chegam às nuvens ou que arranharam os céus...
É por estas e por outras que o uso de pai deve ser administrado com muito cuidado! Embora seja, geralmente, aceite que abraçar um pai pareça não ser um desperdício E dizer: “Amo-te, pai!” esteja para o coração paterno como a chave completa para o Euromilhões…

EDUARDO SÁ

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