Os amigos...


O que aproxima os amigos, o que os liga entre si é a descoberta de uma afinidade interior, puramente gratuita, mas suficientemente forte para fazer persistir no tempo o afeto, a cumplicidade, a relação e o cuidado. Se quisermos explicar que afinidade é essa nem sabemos. E isto é verdade tanto na amizade anónima que, por exemplo, dois miúdos do mesmo bairro estarão agora a iniciar, como nas amizades célebres, como aquela de Montaigne por Étienne de La Boétie, que levou o primeiro a escrever: “Na amizade, as almas mesclam-se e fundem-se uma na outra em união tão absoluta que elas apagam a sutura que as juntou, de sorte a não mais a encontrarem.
Se me intimam a dizer porque era seu amigo, sinto que só o posso exprimir respondendo: porque era ele, porque era eu”. Não há, portanto, outras razões que expliquem uma amizade verdadeira e duradoura além deste “porque era ele, porque era eu”. O resto é acidental e não tem importância.

A amizade é uma espécie de fraternidade que elegemos. São irmãs e irmãos para a vida; presenças de todas as horas; baluartes discretos, mas inamovíveis; faróis que prolongam os seus sinais na distância; companheiros de viagem, mesmo quando não estão fisicamente a nosso lado. Os amigos falam uma língua só deles: bastam meias palavras para entenderem tudo; os silêncios são tão interpretáveis como as palavras; a comunicação nunca é só funcional, mas traz associada uma componente afetiva; e, muitas vezes, é nessa língua que melhor se desenha a esperança, a consolação e a alegria.

Pode ser esclarecedor recordar que o termo latino para amizade, amicitia, deriva da raiz — am, que no latim popular designa mãe (amma) e ama (mama). A etimologia da amizade reenvia-nos assim não a uma qualquer experiência casual de superfície, mas à memória daquela afeição primeira, que estrutura silenciosamente a existência. Por isso, na sua espantosa leveza, e sem alardes, a amizade dialoga com coisas muito fundas dentro de nós: faz-nos reviver o primeiro amor com que fomos (ou não fomos) amados; toca as nossas feridas, mesmo as que não conseguimos verbalizar; transmite-nos confiança para sermos o que somos e como somos; estimula-nos a progredir vida fora. Nem todas as nossas amizades chegam a tomar consciência da extraordinária viagem interior que as mobiliza. Porém, mesmo quando a amizade parece simplesmente prosaica é este programa que realiza, pois há sempre um instante em que os verdadeiros amigos se revelam como aqueles que estão dispostos a acompanhar-nos aconteça o que acontecer.

A amizade tem a natureza real de um vínculo. Não tendo a proteção de um quadro jurídico ou de um código de obrigações, corresponde a um laço de vida que sentimos a sustentar-nos e que precisa de ser cuidado. Não esperamos nada dos nossos amigos, e essa franqueza é fundamental. Mas não esperando nada, esperamos tudo, na medida em que a sua existência nos permite existir. A doçura da amizade é equivalente a este seu rigor mais infrangível: o meu amigo é este próximo que não deixa de ser distante. Mas é também o distante que sabe tornar-se próximo e íntimo. Por isso, não é a posse que conta na amizade, mas a afeição pela afeição, a dádiva atuada no desprendimento, a presença movida pela generosidade. Aceitamos de forma natural a diferença, que não vem considerada como obstáculo à confiança, mas, pelo contrário, é condição do encontro. Os amigos, mesmo aqueles que têm a felicidade de se encontrar diariamente, sabem que são linhas paralelas destinadas a encontrar-se no infinito.

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