Quando alguém morre na família... não deixa de haver vida... muita vida e ternura e surpresa...

João Paulo SACADURA, A vida é bela! Num ápice, o nosso mundo desabava...
Pública, 18. 02. 2007, 96-97.

A Francisca Sacadura trabalhava connosco no Público. Morreu há um ano.

Há 17 anos casei com a mulher dos meus sonhos, com quem fiz planos de família e futuro, desejando acima de tudo viver, feliz, a seu lado.

Queríamos filhos, claro. Eu queria um (ou uma) parecido com ela, e ela um parecido comigo. Deus fez-nos a vontade e, há oito anos, de uma assentada deu-nos dois rapazes gémeos, bem diferentes, saindo cada um ao seu lado. Tudo nos sorria. A vida, os empregos, as famílias, os amigos... e os filhos, agora.

Há um ano, foi diagnosticado à minha mulher um tumor maligno oculto no pâncreas. Em três meses, até morrer, sofreu dois internamentos, três ciclos de quimioterapia, e a incredulidade de toda a gente. Isto não podia estar a acontecer.

Num ápice, o nosso mundo desabava.

Quando a mãe passou a estar muito doente em casa, rejeitando tudo o que comia e mal se deslocando, os gémeos, com sete anos, aperceberam-se de que algo grave se passava, e falavam com saudade dos tempos em que podiam abraçá-la com força. A única coisa que ela me pediu foi que não mencionasse a palavra "cancro" ao pé deles.

No dia seguinte vieram despedir-se da mãe.
(Imagem do filme "Os garotos estão de volta". Baseado numa história real, este filme mostra o drama do conhecido jornalista desportivo Joe Warr (Clive Owen), que depois da trágica morte de sua segunda esposa, tem que tomar conta de seu filho, Artie (Nicholas McAnulty), um garoto de 6 anos que ele praticamente não conhece. Para tornar tudo um pouco mais difícil, Harry (George MacKay), filho de primeiro casamento de Joe, de 14 anos, está de mudança para a Austrália para morar com ele durante uma temporada. A partir desse momento, Joe terá que se virar para manter uma casa só de rapazes.)
Durante o internamento, dormi no quarto dela todos os dias, mas também todos os dias estava com eles, que ficaram temporariamente em casa de um querido irmão. E ia-lhes falando, aos dois ou com um de cada vez, da evolução do estado da mãe. Só mesmo no final os preparei para a morte dela - até porque, até aí, sempre acreditei que se iria curar. Foram visitar a mãe algumas vezes, o que era um consolo para ela. Mas não era nada bonito de se ver: ali estava a sua querida mãe, entubada e magra, a ser alimentada pelo braço, cansada e quase sem falar, no ambiente frio e asséptico de um hospital. Um dia pediu para receber a unção dos doentes. Chamou-se o padre amigo, que nos casara, aturara em retiros e baptizara os nossos filhos, na belíssima península de Dornes, em pleno Rio Zêzere. Numa cerimónia simples e comovente, ela a tudo respondeu, já ao seu ritmo, mais lento e pausado.

No dia seguinte os gémeos vieram despedir-se, literalmente, da mãe. Foi um momento tocante. Abraçou-os a cada um, e eu vi-os confundidos, comovidos, perturbados. Tinham sete anos, e estavam a viver um drama que ninguém merece viver nessa idade e que os ia marcar para a vida. Nesse dia a médica informou-me que ia mandar aplicar à minha mulher adesivos de morfina, pois achava-a muito consciente da sua incapacidade para comer, lutar, reagir. 0 corpo já não respondia. Por isso contei aos miúdos que a mãe ia receber uns adesivos que a iam pôr a dormir, para não ter dores... até ao dia em que lhes disse que ela já não ia acordar cá na Terra, mas só no Céu,

Nessa ponta final, nesses três últimos dias, chorei muito, chorei para toda a vida. Achava sempre que não podia chorar mais, por mais que disfarçasse, e não conseguia. Toda a minha vida se desfazia, e eu impotente para mudar as coisas... Falei muito com ela ao ouvido, sosseguei-a como me aconselharam a fazer, que eu e sobretudo as crianças ficávamos bem, que ela se poderia libertar e ir em paz... Custa muito ver partir alguém que se ama. Muito mesmo. Pensava e chorava muito também por eles: não mereciam ficar sem mãe numa idade tão nova e em que precisam tanto dela, ainda por cima esta mãe, que trazia a calma, o equilíbrio, tanto amor lá para casa. Na manhã seguinte, três dias depois da visita deles, eu estava ajoelhado ao pé da sua cama a rezar o terço que ambos segurávamos, embora ela já sem dar acordo de si, dormindo de respiração alterada, como todo o dia e toda a noite, quando senti-a deixar de respirar. Disse-o à minha mãe, que estava comigo, acabei o terço, com calma, e só então informei as enfermeiras, que confirmaram o óbito.

Nessa noite fui buscá-los e voltei para casa, para finalmente dormir com eles - e logo que me viram disseram, contentes: "Se hoje o pai vem dormir connosco, é porque a mãe está melhor!". Deitámo-nos os três na minha cama, e tive de lhes revelar que a mãe já não estava entre nós, e que nunca mais ia voltar, pois tinha ido para o Céu, como tínhamos previsto. Nessa noite, numa conversa memorável em que as lágrimas corriam pelas caras dos três, enquanto se soltavam as questões sobre as causas e consequências, o presente e o futuro ("E agora, pai? 0 que vai ser de nós, sem mãe?!" "Vai ter frio na cama, pai? Vai casar outra vez? Olhe que nós só vamos amar sempre aquela mãe!"), ajudou-me um livro feito para ler com as crianças e ajudá-las num momento difícil: "Estar triste não é mau". Por sorte, a minha irmã tinha-mo dado nesse dia no hospital.

E uma a uma, as peças iam-se encaixando. Uma sugestão daqui, outra dali, e as pessoas certas, mandatadas por Deus, consciente ou inconscientemente, iam-me ajudando e indicando o que fazer. Decidi poupar as crianças ao enterro da mãe e aos "beijos das velhas carpideiras", e em vez disso pedi uma missa especial para eles e primos pequenos, de paramentos brancos, recordando a mãe por uma fotografia grande que coloquei na base do altar; antes disso, e porque é importante eles verem para onde ela foi, levei-os discretamente à capela onde a sua urna repousava, fechada, em câmara ardente; ajoelhámos e rezámos os três, e sobre o caixão depusemos as três rosas de cores diferentes que antes eles tiveram a ideia de comprar. Na missa do sétimo dia, já quiseram estar comigo, firmes e de mão dada, quando fui ao altar consolar-me e consolar os amigos. Acabaram por ir ver, como eles pediam, o "túmulo" da mãe - como insistiam em chamar ao jazigo de família - mas só no Dia da Mãe. Tornámos a levar uma flor cada um, e fomos só os três, numa peregrinação simples e comovedora, carregada de saudade, curiosidade e significado, tudo vivido com grande simplicidade e naturalidade.

Temos vivido desde então em grande sintonia, eu e eles, lembrando-a todos os dias e rezando-lhe todas as noites. "Olá, mãe!", começamos sempre. "Temos uma Mãe do Céu e uma mãe no Céu", costumam dizer. Falamos amiúde dela, e não há tabus entre nós: nem em questões de saúde ou de doença, de vida ou de morte. Três meses depois, o Céu levou-lhes o avô (meu pai), e seis meses depois a avó (minha sogra). Mas já foram sempre eles que discutiram comigo quando os queriam ir visitar ao hospital, porque "apesar de sabermos que não é uma visão agradável, o facto de nos ver pode dar mais forças à avó!". Lógico. As crianças deviam ser ouvidas mais vezes e levadas mais seriamente. 

Por isto ou por aquilo, a mãe é lembrada e relembrada com ternura, saudade, e muita naturalidade, numa voz normal. “Como a mãe gostava disto! ", dizem por vezes. "às vezes, ainda me custa acreditar que a mãe morreu, pai... Ou, se arranjamos facilmente lugar para o carro, "É a mãe que está a velar por nós! ". Ou ainda, quando numa festa põem músicas mais lentas e os parzinhos de tios se agarram a dançar, "Dança comigo, pai, não fiques triste, faz de conta que a mãe está aqui connosco e me enviou para dançar contigo e te animar!". Impagável. 

Vivo hoje com a cama fria, mas a alma quente. E este calor anima-me a percorrer os dias sempre com esperança, responsabilidade, desejo de fazer mais e melhor e preparar-me e prepará-los para o feliz reencontro com a mãe, um dia. E estou profundamente convicto que a vida nos vai trazer, como já trouxe, mais experiências sublimes. Vamos sempre ter surpresas e desaires, conquistas e reveses. Mas sei que vai sempre valer a pena viver. já bem basta o que a vida nos reserva! 

Tanta coisa, todos os dias!

Precisamos apenas de estar mais atentos...

No filme "A Vida é Bela", Roberto Benigni constrói um extraordinário jogo a volta da tragédia que está a acontecer a tantos judeus num campo de extermínio nazi... tudo para poupar ao filho a noção da difícil e cruel realidade. 0 final não é feliz, mas até lá a criança vive essa felicidade. Benigni dá-nos uma extraordinária lição de vida. E qual é essa lição? Muito simples: a de que a vida vale a pena ser vivida. Seja qual for o desfecho.

Apesar de nós.
E apesar de tudo. (0riginal publicado na "Família & Sociedade" de Dezembro de 2006

Comentários

  1. Como me comovi ao ler este seu relato tão emotivo...Sinto que durante 15 meses, calçamos os mesmos "sapatos". No meu caso, com a perda do meu pai, para um tão mortífero e imbatível oponente...Desejo-lhe tudo de bom, e que consigam ultrapassar tão dura perda. É um homem e pai coragem, e os seus filhos, orgulhar-se-ão certamente, por terem a felicidade de ter um pai assim...Sejam felizes.
    Susana Martins
    http://poppiesandbutterflies.blogs.sapo.pt

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